Por: Kenia de Oliveira, analista de projetos sociais do Instituto JCA
A participação social e cidadã é um direito humano fundamental para o alcance da justiça social. Ela deve ser exercida em todos os espaços, considerando o multiculturalismo e a diversidade da vida social. Em se tratando de crianças e adolescentes, demanda que adultos (as) e responsáveis que se relacionam de forma direta ou indireta com eles e elas criem condições efetivas para que a participação seja plena, colaborativa e não figurativa, com vistas a contribuir com a inclusão e seu desenvolvimento global, um movimento que deve ser norteado pelos princípios da proteção integral e prioridade absoluta.
Crianças, adolescentes e jovens, nestas fases de suas vidas, precisam ser incluídas nas dinâmicas dos espaços que estão inseridos (as), para que se sintam parte, opinando sobre os direcionamentos, tomadas de decisão nos assuntos que lhes dizem respeito ou são o foco da discussão. Seja em casa, na família, na escola ou na vida social, sua perspectiva deve ser levada em conta. Este deve ser o caminho percorrido pelos (as) operadores (as) do Sistema de Garantia de Direitos (SGD) e das pessoas que atuam na defesa da infância e juventude: a busca para garantir voz, vez e integração a esses grupos sociais em diversos espaços com efetividade.
Como exemplo de ações que garantem representatividade e protagonismo colaborativo, nos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) – órgão controlador e deliberativo da política de atendimento da criança e do adolescente nas esferas municipal, estadual e federal – temos os Comitê de Participação de Adolescentes (CPAs), com ações que ocorrem ao longo das gestões, independente de quem assuma os conselhos. Neste lugar, outras formas de participação não são excluídas, pelo contrário, se fortalecem, ampliando-se ainda mais a consciência e posicionamento de seus participantes sobre o seu lugar de fala, alcançando o público sujeito de tal política para maior sentido da luta coletiva. O CPA garante o espaço dos sujeitos que são o foco das discussões, garantindo com que suas opiniões sejam consideradas na formulação das políticas públicas e sociais, destinação de recursos, controle social, sendo estas discutidas e aprovadas em plenária.
Nesta perspectiva, podemos citar a experiência da implementação do CPA no CMDCA Niterói (Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente). Fazendo uma linha do tempo dessa construção, podemos considerar o início da implementação na rede de diálogo entre os diferentes atores do sistema de garantia de direitos na cidade de Niterói, tanto na esfera pública, quanto da sociedade civil, a rede de proteção que construía às ações para os (as) adolescentes na cidade de maneira coletiva no início dos anos 2000. No desenvolvimento dessas relações, surgiu o fórum Voz da Criança com vistas a dialogar com crianças e adolescentes da cidade sobre sua situação no acesso aos direitos nas diferentes políticas do município. Com as substituições e trocas dos diferentes atores que mobilizam essa rede e o desânimo diante da falta de clareza, que culmina no atropelamento dos fluxos democráticos, principalmente pelo poder executivo sobre o papel do conselho e o efetivo exercício da democracia participativa, os espaços foram se esvaziando.
Porém, em 2022, com o direcionamento do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) para realização da 12ª Conferência Municipal dos Direitos da Criança e Adolescência, a participação e protagonismo desses grupos sociais foi sendo retomado nas conferências livres, realizadas nas instituições da sociedade civil e na própria Conferência Municipal, sendo a 11ª em Niterói. Tanto nas conferências livres, quanto na conferência oficial, foram discutidos todos os eixos temáticos do documento orientador do CONANDA. No entanto, o Eixo Temático 3, que tratava da “Ampliação e consolidação da participação de crianças e adolescentes nos espaços de discussão e deliberação de políticas públicas de promoção, proteção e defesa dos seus direitos, durante e pós-pandemia” foi o que mobilizou e revisitou a necessidade de resgatar o espaço do adolescente nas discussões, que até aquele momento estava adormecido. Como direcionamento da conferência surge a proposta para implementação do CPA e quatro delegados e delegadas adolescentes são eleitos para a conferência estadual que ocorreu no ano de 2023. A proposta tornou-se uma ação para o plano de ação do CMDCA Niterói, biênio 2023-2024.
Em 2023, com a nova gestão do CMDCA tomando posse, as (os) adolescentes, que participaram de toda a construção e mobilização para as conferências livres e Conferência Municipal em 2022, cobram da organização que integram, o Instituto Jelson da Costa Antunes – Instituto JCA – uma Organização da Sociedade Civil, fundada em 2004, com sede no Baldeador Niterói, em seu segundo mandato no CMDCA Niterói, ocupando cadeira na vice presidência na gestão 2023-2024, sendo representado por Kenia Costa, analista de projetos sociais do IJCA, que as propostas saiam do papel e se efetivem em ações.
Neste período, o IJCA está à frente da vice-presidência do conselho e com os demais conselheiros e conselheiras governamentais e da sociedade civil, promovem os diálogos para consolidação do CPA no CMDCA Niterói. Em abril de 2023, os (as) adolescentes se posicionaram em assembleia ordinária do CMDCA sobre essa questão, o que foi acolhido pelos (as) conselheiros e conselheiras de direitos como ação de extrema importância e passou a acontecer junto ao processo de escolha para conselheiros tutelares do CMDCA Niterói, um desafio para as (os) conselheiras (as) de direitos.
Começamos pela criação de um grupo de WhatsApp com a presença ampliada de adolescentes, responsáveis, representantes de instituições, conselheiros (as) e técnicas do CMDCA e integrantes do Fórum DCA Niterói que já vinham dessa construção e resgataram o Fórum Voz da Criança na cidade. A construção da agenda para o 18 de maio, mês de combate ao abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, organizada pelo fórum DCA de Niterói e a celebração do aniversário do ECA em 13 de julho, foram as primeiras ações para o início da construção do CPA. A atividade coletiva contou com adolescentes de diferentes instituições, principalmente aquelas mais engajadas nesse tema. A atividade do aniversário do ECA ocorreu no Parque das Águas, em Niterói, e a condução da mesa temática foi realizada pelos (as) adolescentes que vinham se engajando nesse diálogo. A partir daí, nos somamos ao Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente do Estado do Rio de Janeiro (CEDCA RJ), que já havia implementado o CPA no Estado por meio da deliberação 076. O documento norteou a consolidação da deliberação do CPA em Niterói, além de outros documentos, leis, resoluções e deliberações importantes do CONANDA que também foram fundamentais nesse processo. A partir destas leituras, adequamos a realidade de Niterói.
O ano de 2024 foi de muitos aprendizados e ampliação da consciência sobre o CPA tanto para os (as) adolescente e famílias quanto para conselheiros (as), SGD e rede DCA Niterói, com a posse de seis adolescentes das cidades de Niterói e São Gonçalo de instituições e escolas diversas tomando no CPA do CEDCA. Também foi o ano da conferência nacional que ocorreu em Brasília e a delegação do Rio de Janeiro esteve representada com crianças, adolescentes e jovens, tendo Niterói também presente. Neste mesmo ano, foi criada a comissão de mobilização para o CPA no CMDCA Niterói, responsável por consolidar o espaço do (a) adolescente no conselho. Esta foi a comissão responsável pelo processo de escolha de adolescentes para composição do CPA, formulação da deliberação, edital e condução de todas as etapas do processo em conjunto com os (as) adolescentes e conselheiros (as) do CEDCA responsáveis pelo CPA no conselho estadual.
Após todo esse processo, em julho de 2024, os (as) adolescentes tomaram posse do seu espaço de participação que é o CPA no CMDCA e demos início a momentos importantes de diálogo sobre aquele lugar novo, mas de extrema importância para efetiva democracia. Na primeira reunião nos encontramos para falar de expectativas e da construção da agenda para os próximos meses, alinhando a realidade escolar dos (as) adolescentes e sua rotina. Nos meses que se seguiram, os (as) adolescentes participaram de espaços importantes como foi a escola de conselhos, encontro entre os CPAs cuja primeira edição ocorreu no Instituto JCA em dezembro de 2023 e em 2024 ocorreu em um sítio para construção da agenda comum entre adolescentes do CPA do Estado do RJ.
Fizemos essa caminhada junto ao coletivo Entre Redes, formado por cinco importantes instituições de Niterói: Bem TV, Instituto JCA, Projeto Avante, Projeto Grael e a Rede Quimera, que possuem registro ativo no CMDCA. Essa rede atuou diretamente na garantia de recursos humanos para mobilização, engajamento e acompanhamento dos adolescentes nos espaços decisórios e de construção, ao passo que iam amadurecendo nesse processo para uma participação mais ampliada e consciente, para que não fossem reduzidos a uma atuação figurativa ou em ocasiões pontuais demandada pelos adultos (as).
O Entre Redes tem provocado às instituições que a compõem para refletir sobre o seu papel na construção de espaços de diálogo com o adolescente e o jovem, além da importância da construção coletiva de ações, com o fim de viabilizar direitos e políticas públicas criadas para sua proteção junto a eles e elas. O que é um desafio nessa mudança de postura, principalmente em uma sociedade como a nossa que, estruturalmente, tem o adultocentrismo como base, onde o decidir pela criança, adolescente e jovens o que é melhor para eles e elas, sem levar em conta sua opinião sobre o assunto, é muito comum e se reproduz nas relações sociais.
Outro ator importante e essencial destacarmos aqui nessa trajetória são as famílias, pois dependendo do perfil de cada uma, demanda acolhimento e cuidados mais atenciosos para vínculos mais estreitos e confiança mútua. O profissional de referência nessa frente, deve se preocupar em garantir uma comunicação clara, transparente, esclarecendo dúvidas, providenciando a documentação necessária para a participação dos (as) adolescentes, entre outras necessidades. Isso facilita o envolvimento dos (as) responsáveis, a compreensão ou até mesmo o seu engajamento nas ações empreendidas e na liberação do (a) seu filho ou filha para ocupação deste lugar importante de controle social, que também contribui para seu pleno desenvolvimento.
Apesar da implementação do CPA Niterói por meio da deliberação 366, temos alguns desafios para permanência desse lugar da (o) adolescente, independente da gestão que assuma o CMDCA, esse espaço precisa permanecer ativo com a presença de adolescentes. Os (as) conselheiros (as), precisam estar dispostos, criando condições de permanência para que isso seja possível. Outro desafio é a desconstrução de falas e posturas reducionistas da participação de adolescentes como algo “engraçadinho”, “bonitinho”, que não é levado a sério. A integração de adolescentes nas ações do trabalho coletivo consolida a seriedade do que está sendo feito para que a participação se efetive como um direito. A inclusão de adolescentes no CMDCA não pode ser algo atrelado a uma pessoa ou instituição, mas deve ser critério para o funcionamento, pois um conselho sem o público sujeito de suas ações é frágil e não tem representatividade.
O regimento interno é um documento que sistematiza o funcionamento de um conselho e deve ser atualizado a cada nova gestão. A inclusão da comissão permanente de mobilização para o CPA e o próprio CPA devem ser inseridos nessa estrutura para não serem esquecidos. Para além de vez e voz, a luta também é pela efetivação do direito ao voto pelo (a) adolescente, se tornando conselheiro (a) de direito, mas isso demanda mudança na lei de criação do CMDCA e vontade política para acontecer. Por conta disso, a apropriação do (a) adolescente sobre o seu direito à participação nesse lugar é urgente e necessária e espaços de formação política para que eles e elas possam ampliar ainda mais sua consciência sobre a ocupação do seu espaço precisam ser criados.
Concluímos que, a trajetória do CPA em Niterói reforça a importância de garantir que crianças e adolescentes sejam protagonistas na construção de políticas que os afetam. O compromisso com a proteção integral e a prioridade absoluta deve guiar cada ação, assegurando que esses sujeitos de direitos tenham voz ativa e participação efetiva. Nesse cenário, o CMDCA, o Fórum DCA, o Entre Redes, entre outros atores da sociedade civil e governo se destacam como uma articulação potente, mobilizando instituições e profissionais para fortalecer essa participação de forma contínua e estruturada. Fortalecer esse direito, não é apenas um dever legal, mas um caminho necessário para uma sociedade mais justa, democrática e comprometida com a infância e a juventude.
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