Quarentenados – Momento literário por Isabela Azevedo

Fuga

(Fernando Sabino)

Mal o pai colocou o papel na máquina, o menino começou a empurrar uma cadeira pela sala, fazendo um barulho infernal.

– Para com esse barulho, meu filho – falou, sem se voltar.

Com três anos já sabia reagir como homem ao impacto das grandes injustiças paternas: não estava fazendo barulho, estava só empurrando uma cadeira.

– Pois então para de empurrar a cadeira.

– Eu vou embora – foi a resposta.

Distraído, o pai não reparou que ele juntava ação às palavras, no ato de juntar do chão suas coisinhas, enrolando-as num pedaço de pano. Era a sua bagagem: um caminhão de plástico com apenas três rodas, um resto de biscoito, uma chave (onde diabo meteram a chave da despensa – a mãe mais tarde irá dizer), metade de uma tesourinha enferrujada, sua única arma para a grande aventura, um botão amarrado num barbante.

A calma que baixou então na sala era vagamente inquietante. De repente, o pai olhou ao redor e não viu o menino. Deu com a porta da rua aberta, correu até o portão:

– Viu um menino saindo desta casa? – gritou para o operário que descansava diante da obra do outro lado da rua, sentado no meio-fio.

– Saiu agora mesmo com uma trouxinha – informou ele.

Correu até a esquina e teve tempo de vê-lo ao longe, caminhando cabisbaixo ao longo do muro. A trouxa, arrastada no chão, iam deixando pelo caminho alguns de seus pertences: o botão, o pedaço de biscoito e – saíra de casa prevenido – uma moeda de 1 cruzeiro. Chamou-o, mas ele apertou o passinho, abriu a correr em direção à Avenida, como disposto a atirar-se diante da lotação que surgia à distância.

– Meu filho, cuidado!

A lotação deu uma freada brusca, uma guinada para a esquerda, os pneus cantaram no asfalto. O menino, assustado, arrepiou carreira. O pai precipitou-se e o arrebanhou com o braço como a um animalzinho:

– Que susto você me passou, meu filho – e apertava-o contra o peito, comovido.

– Deixa eu descer, papai. Você está me machucando.

Irresoluto, o pai pensava agora se não seria o caso de lhe dar umas palmadas:

– Machucando, é? Fazer uma coisa dessas com seu pai.

– Me larga. Eu quero ir embora.

Trouxe-o para casa e o largou novamente na sala – tendo antes o cuidado de fechar a porta da rua e retirar a chave, como ele fizera com a da despensa.

– Fique aí quietinho, está ouvindo? Papai está trabalhando.

– Fico, mas vou empurrar esta cadeira.

E o barulho recomeçou.

 

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